Foi preciso o passar do tempo para que eu escrevesse o meu depoimento sobre os melhores momentos da viagem ao Irã neste último outubro. Selecionar de tudo o que foi visto, as imagens que mais instigaram pela grandeza ou as que mais gerarammaior emoção.E admito que eu já intuía quais seriam no momento do desenho da viagem.
É claro que nossa entrada triunfal na Praça Naqsh-e Jahan, em Isfahan, no exato momento do pôr do sol, foi um elemento surpresa ao grupo que viajou comigo, que é sempre uma imagem emblemática do país. Inesquecível e soberba; incomparável nas formas e na unanimidade de beleza incontestável.
Mas, surpresa mesmo, foi a paisagem cultural na aldeia troglodita de Meymand, localizada na parte ocidental da província de Kerman, no sudeste do Irã. A área é relativamente concentrada de 20x20 km nas encostas do sul das montanhas centrais do Irã, de onde o Monte Shikuh circunda a área ao norte, oeste e leste, atingindo a altitude máxima de 2600m. A diferença de altitude na área da paisagem é de cerca de 1000m de norte a sul, proporcionando condições climáticas diversas que tiveram influência na vida dos seus habitantes nas diferentes estações do ano e seus rigores de temperaturas.
Meymand é uma região intocada, que testemunha as diferentes formas de interação do homem e da natureza que vivem em harmonia ao longo de milênios. Na verdade, é um exemplo excepcional e marcante de uma paisagem cultural, onde a migração sazonal e a transumância continua a ser praticada na forma tradicional até hoje. Embora esse tipo de estilo de vida tenha sido comum em muitas partes do mundo, inclusive no Irã, ele foi praticamente extinto. Um laço perdido, deixando apenas, em alguns lugares no mundo, as relíquias de paisagens desabitadas ou elementos individuais, muitas vezes transformados em museus a céu aberto.
Para quem, como eu, viveu por um ano na Capadócia, - e durante este período me dediquei a ir atrás das raras cavernas ainda habitadas, caminhar pela vila de Meymand, subindo e descendo as encostas, entrando nas casas mais acima da vila e passeando pelas construções e cavernas que estão continuamente habitadas, desde os tempos pré-históricos até hoje - é de um impacto tremendo, que só digeri aos poucos no meu retorno, tamanho era não apenas o espanto, mas o contentamento de estar ali, presenciando as adequações feitas (poucas) de um estilo único de vida que, portanto, faz Meymand ser um exemplo raro, senão único, ainda vivo.
Em uma grande diversidade de tipos de habitações, ou seja, cavernas escavadas nas encostas de depressões naturais no solo, seguindo o movimento sazonal do gado para altitudes mais altas ou mais baixas de acordo com as necessidades, a paisagem central evoluiu para prover todas as necessidades dos habitantes e seus animais. De fato, o território é testemunha do desenvolvimento gradual de uma grande diversidade de abrigos para humanos e animais, associados a um estilo de vida especificamente adaptado.
Também ali fiz uma das mais singelas e saborosas refeições, sentada no chão onde uma senhora de modo e face gentil nos servia orgulhosa, cuidadosa e curiosa.
A refeição servida era típica local, e pelo que nos foi dito, só se come mesmo ali, e consistiu em duas espécies de caldos generosos e acompanhados de um pão delicioso. Simples, nutritiva e saborosa. Ver aquela senhora acocorada ao nível do chão, que havia preparado a comida para a nossa comitiva de 16 pessoas no dia anterior, em meio aquele ambiente tão rústico e ao mesmo tempo tão acolhedor, foi uma das imagens da viagem que mais me emocionou.
Outra refeição digna de nota foi a que fizemos em Yazd. Eu já havia mencionado ao grupo que, via de regra, a melhor maneira de se apreciar a culinária iraniana é na casa dos iranianos, onde verdadeiros banquetes delicados e muito sofisticados são preparados artesanalmente e de forma familiar, envolvendo diferentes tipos de parentes e amigos. Se dependemos apenas dos restaurantes, sim, é possível encontrarmos alguns bons restaurantes nas grandes cidades e em certos hotéis, entretanto, de forma geral, os iranianos ainda não têm a "cultura" de se comer fora. Iranianos comem fora quando estão em viagem pelo país ou quando desejam um Kebab (refeição que, em razão do equipamento, é mais facilmente preparada fora do lar).
Assim, com o nosso parceiro Cristiano Cabral, construímos essa atividade num país em que um grupo de 16 pessoas não deixa de ser notado e em ambientes familiares não deixa de ser uma novidade o recebimento de estrangeiros; não é tarefa fácil de ser organizada.
Mas lá estávamos nós, num pátio grande e frondoso, com árvores, arbustos, flores e entre elas um pequeno pé de maconha, bem em frente ao terraço, onde seria servido o almoço e algumas noções de culinária.
Chegamos com presentes porque, como nós brasileiros, os iranianos não chegam em lugar algum sem ter nas mãos uma delicadeza. No nosso caso, eu havia trazido café; Sônia trouxe chocolate; Maria Emília, Tarcísio e Rosangela trouxeram a goiabada e o casal Rocha também trouxe artesanato típico mineiro. Foi uma contribuição nossa que acabou sendo bem acertada.
A casa era de uma senhora que, de acordo com o que nos foi dito, era muito idosa e estava recolhida.O filho que morava em frente, a esposa e suas amigas haviam preparado o cardápio. A questão do parentesco: casa de quem, amigos de quem, nora de quem...bem, levou o grupo a imaginar que tudo aquilo ali tinha sido planejado para plagiar a família e a casa, entretanto, o próprio grupo admitiu que isso não importava em quase nada. A verdade é que a maioria das pessoas precisa ver para crer, e para quem acredita nenhuma palavra é necessária, e para quem não acredita, todas as palavras são inúteis.
Mas, completamente de acordo, a refeição foi extraordinária. Começamos com frutas e um chá delicioso servido com os saborosos "pirulitos de açúcar com açafrão", além de outros doces.
Estávamos com fome comemos satisfeitos. Pela pausa, pela área fresca, pela oportunidade de estar ali sentados apenas usufruindo da tarde que parecia nos convidar a relaxar.
Depois, tivemos uma demonstração de alguns pratos especiais. E assim, como no programa da Ana Maria, íamos aprendendo e vendo a execução de uma receita à parte, enquanto a outra estava pronta para ser servida. Aquela pronta para ser servida tinha estado no fogo em cozimento brando por horas. Sim, no Irã a comida é de cozimento lento para absorver todos os elementos e temperos. Mesmo a refeição ligeira é uma arte.
Cláudia me auxiliou a documentar o que estava sendo preparado e Izabel tomou notas de tudo e nas proporções devidas. Vai reproduzir o que aprendemos conforme for possível, num encontro a ser realizado em breve entre os participantes.
O arroz com ervas delicioso, a beringela com cebolas fritas, a salada de iogurte com pequenas rosas diante da toalha estendida e da refeição coletiva, foi um momento glorioso.
Outro momento genial: nossa hospedagem no Caravanserai Zein-o-Din. Basta te dizer que das mais de 999 caravanserais erigidas pelo XáAbbas em todo o reino, como fortalezas para defesa dos viajantes e seus produtos na famosa rota das caravanas, a grande maioria era retangular, mas duas delas foram construídas como fortalezas redondas. Uma é hoje apenasruínae a segunda é Zein-o-din, onde passamos a noite. Pernoitar ali e subir ao terraço para ouvir estrelas foi um dos melhores momentos da viagem.
Não se chega ao fim de uma lista de momentos memoráveis por casualidade. Rever Arg-e Bam foi especialmente tocante. O que as forças destrutivas podem acabar e a presença humana pode reconstituir.
E, em se falando de construções da natureza, pela primeira vezestive no vale de Rageh <www.rageh.ir>, com o engenheiro de minasque há 3 anos o " descobriu" por acaso, quando estava a serviço de manutenção de uma mina em Rafsanjan. O Canyon, a 15 km da cidade de Rafsanjan, é o resultado da ação do rio Guivdary cortando o terreno erodido ao longo de 2000 anos.
É o tipo de paisagem que nos desafia em todos os sentidos porque é magistral. Uma cicatriz rasgando a terra que cede às marcas de uma presença que resulta numa fecunda intervenção. Uma tatuagem na expressão do corpo terrestre marcado pelas formas esculpidas no terreno e as únicas de possível sobrevivência neste ambiente junto a presença de 35 espécies diferentes de pássaros, dos que migram e dos que se mantêm sempre presentes, das serpentes, raposas e de uma espécie de lagarto. Percorremos o terreno em carros de tração nas quatro rodas e fomos convidados a tomar chá com doces em um acampamento montado para no futuro receber investimentos e turistas.
Tive apenas um momento solo especial e secretamente meu, mas daqueles que permanecem com a gente por muito tempo. Revi meu amigo e, neste caso, o fornecedor de serviços no Irã: Cristiano Cabral. Eu havia, a propósito, marcado o encontro no Abassi. Entrei no local uma hora antecipada e senti uma espécie de enternecimento por rever um de meus refúgios. Eu entrava intimamente no local que, à primeira vista, nada havia mudado. Ganhei o hall e fui diretamente ao jardim do Paraíso onde mantenho algumas das melhores lembranças do país. Perambulei pelo jardim e nas áreas laterais até ganhar ar e poder me dirigir ao ponto de encontro marcado.
Com Cristiano, tomei um caffè Lattee nos sentamos em uma das varandas externas laterais. Fazia frio, mas não me importei. Falamos o necessário. Havia tanto tempo que não nos víamos. Aproveitei a oportunidade e a grandeza do afeto que nos une. E, por altas horas, caminhamos por uma das mais belas cidades que dormia silenciosa. A bela adormecida.
Se eu pudesse, teria abraçado o meu amigo um pouco mais...agradecido um pouco mais... talvez, tivesse caminhado um pouco mais. Deixar Isfahan é sempre dolorido, que dirá deixar o abraço e a acolhida de um amigo que não se via há tanto tempo.
No dia seguinte, acordei com o sorriso gentil da minha companheira de quarto, que se abriu escancarado e iluminado. Ela me ofereceu uma guarnição de castanha, amêndoa e damasco; um bocado de carinho que ela providenciava em doses quase diárias. Tive mais uma vez un groupe très, très gentil, que tanto confia e reconhece o trabalho de uma grande equipe.
Quem Leva
Marcia Sztajn by Sztajn2go
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Créditos Fotográficos: arquivo pessoal Marcia Sztajn e Sonia Wehmuth, Isabelle Marie Souza e Isabel Felix
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