Why Bother? Ou Você tem fome do quê?
Foi Aliev Israpril, o fotógrafo responsável pela equipe de filmagem, que me acompanhou de Makhachkala, no Daguestão, até a capital da Chechênia - Grozny, que foi direto ao âmago da questão:
- Márcia, mas por que se incomodar em divulgar o Cáucaso Norte no Brasil quando quase ninguém sequer ouviu falar de Daguestão, Chechênia, Inguchétia ou Ossétia do Norte?
E Israpil prosseguiu:
- É só quando temos conhecimento que somos instigados a querer visitar outros lugares, e não ao contrário.
Respondi que em meu post, iria começar exatamente assim... Por que ir ao encontro de destinos tão pouco conhecidos entre nós, ou ainda um ou outro, cujo nome familiar lembramos pela alcunha de regiões marcadas por conflitos de independência?
A resposta não é tão simples. Mas, acredite, ir aonde ninguém nunca foi faz parte de um desejo incontido de um público muito especial cujo nicho de mercado tem perdurado por décadas, sobrevivido crises financeiras e crescido mais do que qualquer outro no mercado brasileiro.
E, é aí que entra a Ciscaucásia. Aonde?
Nessa área que se espraia pela parte norte da cadeia das montanhas do Cáucaso até as planícies do sul da Rússia, e possui sete repúblicas dentro da Federação Russa. De oeste a leste, são elas: Adiguéia, Carachai-Circássia, Cabardino-Balcária, Ossétia do Norte, Inguchétia, Chechênia e Daguestão. É o lar de inúmeros grupos étnicos e centenas de diferentes nacionalidades, a ponto da região ser conhecida como a terra dos muitos povos e línguas.
Essas repúblicas são subdivisões federais da Rússia, tão pequenas como distantes de Moscou (mais de 1800 km² de Makhachkala, por exemplo), no sudoeste longínquo do país. São conhecidas por sua grande diversidade e beleza cênica estonteante, e ao mesmo tempo por alguns focos de conflitos internos a respeito de suas nacionalidades e desejo de se autoafirmarem como nações independentes. Naturalmente, esse descontentamento com a pátria-mãe russa depende muito de para quem você perguntar se está descontente ou se o incômodo depois de tantos anos passados dos conflitos permanece.
Se todos esses povos fazem parte do maior país do planeta, a Rússia, então para falarmos sobre essa região, precisamos começar a esclarecer um dos conceitos que norteiam e diferenciam especialmente o país em relação ao nosso: o seu conceito de nacionalidade.
Há o russo étnico, que é aquele que é filho de pai e mãe russa - a palavra em russo que o define é russkii, e há aquele que, como qualquer pessoa, nasce e vive na Rússia, cidadão por nascimento ou escolha, mas não é russo étnico. A palavra que o define é Rossiyanin. É o conceito do direito do sangue, em contraposição ao que vige entre nós: o direito do solo. No Brasil, quem nasce em solo brasileiro é brasileiro ou pode arguir a nacionalidade brasileira. Na Rússia, esse conceito do sangue - em que só é russo étnico (eslavo) quem é filho de pai ou mãe russa, se eterniza as diferenças de nacionalidade no país, igualmente preserva há séculos as mais diferentes culturas em um único território compartilhado com um governo central fortemente centralizado. Isso dito, resume-se assim: é a raiz da diversidade e, às vezes, do conflito.
As repúblicas, sejam elas dentro ou fora do Cáucaso - poderíamos citar outras como a República da Buriácia, na Sibéria Oriental, mas a região do Cáucaso representa a maior concentração de povos e diferentes nacionalidades em uma área bem delimitada geograficamente, com suas características fundamentais e tradicionais preservadas, como a língua, a religião e as tradições que convivem no espaço físico da Federação Russa.
De forma geral, e da perspectiva de quem tem visitado a região algumas vezes e por algumas semanas nesses últimos 4 anos (e pretende continuar explorando), me pareceu que o descontentamento com a pátria-mãe russa, não é um consenso geral, muito pelo contrário, esse sentimento é de uma outra época. Passou. E, em tempos atuais, me parece que a maioria está satisfeita com esse pertencimento (embora nossos motoristas e guias locais, por exemplo, nos lembrem de histórias traumáticas de vilarejos chechenos e do Daguestão, durante a Segunda Guerra Mundial, quando Joseph Vissarionovich Stalin (dezembro de 1878 a março de 1953), aprovou em 1944, um plano para desalojar e transferir à força mais de 400.000 chechenos acusados de colaborar com os nazistas, polvilhando-os por toda a Ásia Central, minando a própria ideia de uma identidade chechena distinta e traindo a promessa de independência às Repúblicas do Cáucaso Norte dada pelos bolchevistas em troca do apoio recebido para a revolução. A política de Stalin diante da questão das nacionalidades - diretamente oposta ao que havia sido prometido, expulsou ou exterminou não apenas chechenos, como Daguestões, Ossetas, entre muitas outras nacionalidades que sofreram o mesmo destino. Em realidade, o grande expurgo de Stalin teria contabilizado cinco milhões de presos, e perto de um milhão de pessoas fuziladas. Todo o período de Stalin foi de terror, mas os anos de 1930 registram os piores excessos. O intuito sempre foi o de desenraizar os grupos hostis e suas lideranças.
Há na paisagem intocada, ao redor do majestoso Lago Kezenoy-am de 1869 metros de altitude na Chechênia, próximo à fronteira do Daguestão, onde pernoitei algumas vezes, vestígios claros e referências a esses exílios forçados de populações e vilas inteiras transferidas para a Ásia Central - o local do antigo assentamento está abandonado.
Em 1950, a maioria que sobreviveu retornou. E, por sinal, para os que conseguiram regressar, o Estado paga uma espécie de indenização que, pelo que tenho sentido, não é bem aceita pelo restante da população.
Mas, para os pequenos grupos de visitantes que têm me acompanhado, a explicação do motivo pelo qual você deveria ir a regiões tão desconhecidas entre nós pode ser descrita de outras muitas formas.
A primeira que se nota, e diz muito mais do que mil palavras, é de que em toda a região praticamente se desconhece o ato de oferecer gorjetas. Sim, não se trata daquela recusa educada que deve ser encenada antes de se aceitar a gratificação. Não. Na região, não existe a expectativa de se receber tal gratificação. A maior gratificação que se tem é a nossa presença.
O que dizer de toda uma região em que o turismo formal certamente ainda não se fez presente?
Sim, há uma modesta seleção de hotelarias e, inclusive, algumas surpresas notáveis, mas são evidentemente exceções em termos de hospedagem: o hotel Grozny City em Grozny, capital da Chechênia; e o meu favorito Alexandrovsky em Vladikavkaz, na Ossétia do Norte. Um clássico da hotelaria na região. Todo o restante das estruturas de hotelarias é simples, básico, mas acolhedor.
A maior parte das refeições que fazemos em nosso percurso é servida entre as famílias dos chefes do vilarejo ou comerciantes reconhecidos dos lugarejos. Não há na maior parte das vezes, restaurantes à disposição.
Somos recebidos como hóspedes e amigos... Abrem-se as casas, preparam-se as mesas, traz-se o mel, as nozes, o pão lavash, o urbech que é a "Nutella do Cáucaso, o Kinkal - refeição tradicional feita de uma variedade de maneiras, mas o importante é que a massa de pão, a carne, o caldo de carne e o molho são servidos separadamente. A khinkal georgiana, inicialmente, é composta dos mesmos ingredientes, mas é servida de forma diferente, os legumes assados e a carne, chamam-se os cantores e músicos e confraternizamos! Se eu gostei de estar ali? Nem te digo.
São as histórias que colhemos ali, em cada uma das repúblicas que viajamos, que de fato representam o clímax e o auge da programação sobre o prisma da interação com a população.
É na mesa do meu querido anfitrião Abdulhamid, nas montanhas inguches, por exemplo, que vamos aprender sobre o casamento e as normas de boa convivência na Inguchétia.
O pai da noiva nunca vê o noivo. Toda a tratativa do casamento é feita pelas mulheres da família. Sogro e genro, cada qual sabe quem é quem, mas nunca convivem, socializam ou se veem. A razão para que o pai da noiva nunca se encontre ou tenha contato com o genro é a preservação e manutenção da sua posição de chefe da família, da qual não abre mão e é incontestável. Mais tarde, o genro, eventualmente, será também um futuro sogro de alguém, e por sua vez também jamais verá a sua autoridade ameaçada e todo o sistema será mantido. A sogra só visita a casa da filha quando o esposo não está. É fácil adivinhar os motivos.
Você pode torcer o nariz e fazer cara de paisagem, mas convenhamos... a fórmula evita mal-entendidos e disse me disse.
É em Koroda, no Daguestão, a nossa visita à guardiã de toda uma vila. A última e única moradora da velha Koroda, cuja deserção em massa ocorreu há mais de 20 anos, em razão das condições do local do assentamento: em uma subida íngreme e exposta às corrosões do tempo, que pode ser cruel, e do risco (em certas partes) de desabamento das casas mais altas.
A população absolutamente se foi para a vila logo em frente, chamada de A Nova Koroda. Mas a sra. Patinat, que já teve sua vida documentada e registrada em vários documentários e capas das mais importantes publicações estrangeiras, permaneceu. E nós vamos explorar o local em ruínas, até chegarmos à sua residência, um verdadeiro oásis de organização, limpeza e aconchego. Naturalmente, não é possível garantirmos a sua presença, embora a senhora octogenária, presume-se, dificilmente é ausente. Os moradores da Nova Koroda, sempre sobem para vila antiga quando a sra. Patinat não está acompanhada de uma de suas filhas. Zelando então por aquela que guarda as memórias coletivas de toda uma vida da vila original.
Nosso percurso começa na República Socialista Soviética do Daguestão, a maior em área e população - com 50300 km2 e aproximadamente 3 milhões de população, a mais diversa e certamente uma das mais intrigantes das repúblicas. O território que hoje se denomina Daguestão, tem registro de ocupações e assentamentos de vida humana desde o período neolítico, entre 12 mil e 4 mil a.C. Próximo a Chokh, na província de Gunib, encontra-se uns dos assentamentos humanos mais antigos da europa. E, Derbent, inscrita como Patrimônio Mundial da Humanidade, a 130 km² da capital do Daguestão - Makhachkala, e à beira do Mar Cáspio, foi sempre identificada como as lendárias Portas de Alexandre. Alguns afirmam que Derbent, de tão antiga, é citada no Corão (a Bíblia do Islão). Antiguidade aqui é importante, mas o fundamental é a originalidade e exclusividade do lugar.
O nome atual é Daguestão, forjado na idade média, se espalhou a partir do século XVII. Literalmente quer dizer: o país das montanhas. O nome condiz e cai como uma luva para explicar a natureza dos homens, mulheres e do lugar. Um lugar que foi constituído de muitos pequenos estados feudais e tribos, confederações de clãs e alianças tribais. De certa forma (e guardadas as devidas proporções), esse espírito permanece.
No mais, a região que compreende o Daguestão e as demais repúblicas ao sul da Rússia sempre esteve naquela faixa desconfortável no limite da influência de grandes civilizações, primeiro entre Roma antiga e China, e, depois, entre a Rússia e a Pérsia. A Rússia finalmente anexou a região em 1813 numa guerra com o Irã.
Em tempos de crise ou politicamente difíceis, entre os quais os períodos de ameaças e guerras, como na Segunda Grande Guerra, essas terras que ficavam nos extertores de um território imenso, frequentemente eram vistas como marginais ao poder central do país, com culturas tão diversas e tão mais próximas, e influenciadas pelos contatos de terras estrangeiras, despertavam rapidamente desconfiança e medo.
Nosso circuito evita sobremaneira as cidades, a não ser Grozny, capital da Chechênia e Vladikavkaz, capital da Ossétia do Norte. Privilegiamos os interiores, nas aldeias, nas montanhas e nos vales. No Daguestão, concentramos o apelo antropológico da viagem; em Chechênia, uma cidade moderna e rica, quase que inteiramente reconstruída, sofrida pelos intensos combates para se tornar independente da federação. Quando a desintegração da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas autorizou o plebiscito para que as antigas repúblicas autônomas ao sul do Cáucaso (Armênia, Geórgia e Azerbaijão), na Ásia Central e no Báltico, ouvissem de suas populações através do plebiscito sobre o desejo de permanecerem na Federação Russa ou se tornarem independentes, na porção norte do Cáucaso, denominada Ciscaucásia, essa prerrogativa foi negada, pois nunca tinham sido repúblicas autônomas. E, é na Chechênia que vamos conhecer melhor as insurreições por parte de alguns líderes da nação chechena que buscavam através da sua independência o reconhecimento do Estado Checheno diante da motivação russa em continuar a subjugá-la através de ofensivas militares.
Tendo em vista a Chechênia ser uma região com recursos naturais que interessam à Rússia, como o petróleo, água e solos férteis para a agricultura, de estar geoestrategicamente localizada no caminho do que ficou conhecido como o caminho do "ouro líquido", sem falar nos vales férteis da bacia do Terek e do Sonja, a Chechênia dificilmente estará apartada da Rússia.
Na atualidade, os anos de conflitos cessaram, os ânimos se acalmaram e o desejo de autodeterminação do povo checheno de se separar da federação está aparentemente controlado. E, com o governo central injetando recursos suficientes na região através de inúmeros projetos, acalma os ânimos, o que se vê claramente na estrutura de sua surpreendente capital - Grozni, onde gozamos dos benesseres dos serviços a nível internacional: restaurantes, teatros, hotelarias, largas avenidas, ricos shoppings centers e belíssimas mesquitas. De Grozni, partimos para a Inguchétia no Vale de Targim, onde no Cáucaso apareceu a cultura de se construir torres de pedras defensivas, é um dos mais emocionantes e deslumbrantes momentos de paisagem da viagem. Diante de uma paisagem magnífica de montanhas, elas denunciam a presença humana, tão pequena e singela em contrapartida às vistas que se descortinam e que sinceramente parecem eternas.
Não fazemos propriamente nenhum city tour, mas pequenas intervenções com a população de cada república. Foi um encontro na aldeia Chok, com o nosso instrutor perambulando por entre as 120 casas tombadas que abrigam aproximadamente 500 pessoas, vendo a cerâmica na aldeia Lak-Balkar, que experimentamos pôr a mão na massa do barro e arriscamos a moldá-lo no torno ou nos vestimos com trajes tradicionais de casamento. Ou ainda, a nossa participação na culinária em Makhachkala, com as mãos na massa para a preparação do Kinkal, aprendendo as tradições locais e saboreando uma cozinha farta, mas simples; ou a participação na filarmônica de dança (lezginka) e cantos tradicionais em Grozny, e a apresentação do grupo Kona em Vladikavkaz.
Todas essas apresentações e atividades foram exclusivas ao grupo, umas em salões de música e outras em galpões. Singelas e tão belas, recuperavam cantos e instrumentos (alguns raros, que foram resgatados) que quase não havia mais quem os tocassem.
Tivemos a companhia de nosso guia empreendedor, aquele que me ouviu e o único que me ajudou a materializar a viagem. Dmitry foi incansável, mas eu o via num impasse... O desbravador dos caminhos do Cáucaso Norte, esse canto do planeta inatingível e temido, para ele sagrado e idealizado, como fazer de tal forma a preservá-lo?
Preservá-lo de sua própria natureza, cuja beleza deve ser conquistada com empenho, árdua vontade, e o entendimento de que não se trata de uma região dócil, nada ali tem ensaio ou maquiagem. Nem gente, nem hotelaria (exceto por uns raros casos em Grozny e em Vladikavkaz), nem aldeia, nem coisa nenhuma.
Quase tudo permanece em seu estado natural. E quem quiser se aventurar, vai encontrar uma região soberba de inquestionável beleza... Uma viagem pioneira. Uma viagem que dá saudades!
Próxima partida: JUNHO 2019.
Quem Leva
Marcia Sztajn by Sztajn2go
CONTATO: (11) 96936-1234 marcia@sztajn2go.com.br www.sztajn2go.com.br
Créditos Fotográficos: Anton Agarkov, Vladmir Sevrinovsky, Lucille Kanzawa, arquivo pessoal Marcia Sztajn e fotos institucionais.
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